terça-feira, 27 de maio de 2008

Guerra é guerra

O trem aparece na curva dos trilhos.
Enquanto se aproxima com seus faróis fortes e o barulho que lembra um metal cortado, ou cortando, os que esperam andam um passo para frente.

"Não ultrapasse a linha amarela", diz a placa presa ao muro.

Passam os vagões.
Os olhos acompanham o caminho das portas, esperando que alguma pare logo em sua frente.
Há um lugar vago lá dentro.
Miragem!

A condução metálica pára. A entrada está ali, logo ali.
As pessoas se espremem frente ao vidro, montando uma espécie de barreira para os que esperam sair.
É guerra, ou algo muito próximo disso.
Abrem-se as portas e a manada sai em disparada rumo ao objetivo: aquele lugar vago.

Sentar. Como é bom sentar no trem.
Passar vinte e cinco minutos sentado.

Apenas um consegue.
Só cabe um!
Talvez, se aquela moça que está mais no canto fosse mais magra, coubessem dois. É isso o que passa na cabeça dos combatentes, embora não revelem.
Mas não. Cabe apenas um.
O vencedor.

E ele senta, ajeita o corpo com uma típica reboladinha.
Encosta sua lombar no assento vermelho, ainda quente devido ao último sobrevivente.
Encosta e olha ao redor, observa todos os que ficaram de pé.

Em sua face, o visível ar de vitória, o claro sorriso no canto da boca e o olhar alto, como quem diz:

"Eu senteeeei, vocês nããão!"

Um típico grito infantil, que irrita os perdedores desde sempre.
Perdedores esses que, como urubus, esperam por uma nova oportunidade enquanto agarram-se a sua única possibilidade, materializada em longos canos gelados.


***


...o trem é um zoológico, um circo, um parque. É, praticamente, um Beto Carrero World que eu freqüento todos os dias.
(claro que as outras pessoas devem pensar a mesma coisa e me colocar junto. ninguém está livre!)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A escuta que não ouvia

Na hora de dormir, um dia desses, minha irmã voltou a comentar uma história antiga comigo.

Quando eu tinha uns cinco anos, mais ou menos, já estava patinando.
Meu professor me corrigia porque eu girava para um outro lado.
Minha mãe começou a reclamar porque eu estava vendo televisão com um volume muito alto, e muito de perto.

E eu nem entendia muito o porquê de tudo aquilo.

Foi quando minha irmã foi ao médico porque tinha problemas respiratórios, se eu não me engano.
Eu fui junto.
O doutor perguntou "e essa aqui, como está?". Minha mãe respondeu falando sobre o volume da televisão.
Ao examinar meus ouvidos, parece que o médico até se assustou.

Não vou saber descrever o que era meu tímpano naquele momento.
Sei que eu estava com 55% da audição prejudicada.
Mais um pouco e aquela otite me levava à um tanto de surdez.

Problemas no ouvido prejudicam o equilíbrio, também.
Por isso eu girava pro lado errado. Eu ia para onde conseguisse.
Sempre soube que a culpa não era minha.

Depois de duas cirurgias, drenos e tampões para poder tomar banho de mar, aqui estou eu, ouvindo plenamente.

No dia em que a minha irmã comentou disso, me dei conta de muitas coisas.
Quando parei de patinar, eu fazia os melhores "currupios" da minha categoria.
Tinha uma facilidade incrível para girar.

O tempo foi passando, eu entrei na faculdade de jornalismo e meu segundo estágio é na rádio-escuta.

Hoje, eu passo ouvindo rádio quatro horas por dia.
Quatro horas de programação.
Meu trabalho depende do quanto eu ouço.

Logo eu, que ouvia só um pouco mais de 40% das coisas.

A ironia do destino sempre me surpreende.

***

- Hoje tu ouve muito bem, né Aloha? Que doidera.
- Sim, eu ouço tudo. Ouço até bem mais do que eu queria.

...e as risadas pararam para que as duas pudessem dormir.

terça-feira, 20 de maio de 2008

A parede do banco

Eram colegas e passavam por um momento difícil, ou nem tanto.
A situação era favorável, portanto.

Ela tinha acabado de ver seu relacionamento chegar ao fim. Tudo bem que não era nada tão sólido, mas não era bom chegar a um fim definitivo.
Ele estava em dúvida sobre o que queria nessa questão. Era uma história difícil, a dele. Parecia que não ia dar certo.

Ela resolveu mudar um pouco. Passou a pintar as unhas de vermelho e a ir em outro tipo de festa. Passou, também, a conversar mais com aquele colega, que parecia ser tão seu amigo.
Ele seguia sendo o colega que parecia ser tão amigo dela, e pensava a mesma coisa.

Chegou o dia de uma festa muito esperada. Uma hora antes de sair, ela decidiu não ir. Contaram para ele, que ligou e disse "vai!".

Bem, ela foi.
Foi e gostou muito.
Foi e se aproximou mais ainda de seu colega.

Falavam-se mais fora da aula, agora.
Eram mais amigos, criando aquela desculpa confortável de que, sendo tão amigos, não seriam nada além.

Na volta de um feriado de novembro, passados alguns dias, ela precisaria ir no trabalho dele. E avisou.
Marcaram, então, de almoçar no centro da cidade.
O nervosismo tomava conta dela, como se fosse lógico o que ia acontecer, mas não devia ser lógico.
Ele estava sem ação, reação, sabe-se lá o quê.

Na saída do almoço, no entando, ele disse estar passando mal.
"Só falta ele desmaiar no meio desse chão sujo", foi o pensamento dela, que sugeriu, então, que parassem um pouco na sombra. Era um dia quente.

Ele se escorou em uma parede de banco, de onde saia um sopro gelado de ar-condicionado.
Então, pediu um abraço. E ganhou.
Pediu outro e se aproveitou da proximidade do rosto dela. Beijou a menina afinal.

Depois daquele dia, depois da parede do banco, se viram de novo.
E quando se viram de novo, quiseram se ver mais uma vez.
E outra, e outra, e quanto mais se viam, mais vezes queria se ver.

Assim, um dia, estavam jantando.
O nervosismo que tomou aquela mesa os fez lembrar daquele primeiro almoço.
Não sabiam para onde ir, nem que decisões queriam tomar.

Falaram coisas sem sentido, mas que deviam ser lidas nas entrelinhas. Sentiam medo, vontade, ciúme.

Na hora de ir embora, no entanto, ele disse que tinha medo de pedir algo e ela responder que não. E ela disse que não podia falar em hipóteses, pois se respondesse que sim tinha medo que a pergunta não fosse séria.

Malditos paradoxos que os rodeavam.

Atravessaram a rua e ele pediu um abraço. Ela já sabia que coisas poderiam vir daqueles abraços.
"E se não fosse em hipótese?"
Essa pergunta marcou aquela noite, e deu rumo para os próximos meses.
Se não era hipótese, sim, a resposta era sim.

E esse é o fim da história de um começo, ou do começo de uma história.

Desde aquele dia, se vêem mais, se falam mais, e contam mais tudo isso por aí.
A diferença? Falam com brilho e certeza no olhar...

***

- Você nunca escreveu sobre isso, né?
- Não, ainda não.



Até hoje.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Foi naquela valsa...

Eu gosto de histórias de amor.
Me fazem pensar que tudo é mais possível, que não é só em filme ou novela.
Até acredito que a arte imita a vida mesmo.

Eles estavam no salão do baile. Ela tinha 16 anos e, na verdade, queria dançar com um rapaz mais alto.
Mas quando começou a tocar aquela valsa, ele não estava disponível.
Foi quando avistou um baixinho de 22 anos que olhava para ela.
Ela pensou, então, "ah, vai ser com esse mesmo. Não posso perder essa valsa."

E, depois daquele dia, ficaram juntos.
Casaram, tiveram filhos, viram nascer as netas.
Compraram uma casa. Viram a construção da casa da praia.
Foram companheiros por 52 anos, até que ele dormiu.

Porque foi assim a despedida do baixinho.
Ele foi dormir.
Ela ficou acordada.

E é acordada que ela fala sobre ele, ou conta essa história sempre que ouve a sua música.

- Foi naquela valsa que eu aceitei o convite. E a gente seguiu dançando por 52 anos - diz.

Ela é minha avó. O baixinho é meu avô.

O casal mais bonito que eu já vi e as pessoas que mais me ensinaram nesse mundo.


Bonita história, né?
Nem que eu escrevesse mil vezes, conseguiria contar da maneira certa.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Sem querer

Minha mãe engravidou de mim por acidente.
O casamento não ia muito bem e, quando ela viu, lá estava eu na barriga.

Então, ela se apavorou.
Eu imagino.
Já tinha a minha irmã na história. Não era o momento de começar tudo de novo.
Mas lá estava eu.
Para minha mãe, restavam poucas opções.

Até que uma senhora, dessas que sabem das coisas, ou vêem as coisas, disse para ela:
- Dependendo o jeito que você vai aceitar essa gravidez, essa criança pode ser sua grande companheira.

Quando descobriram que eu era menina, chegaram contando para minha irmã que "era de perereca" (que coisa mais engraçadinha...), e ela disse, decepcionada:
- Ah, eu queria de pirulito.

E eu nasci.

Meu aniversário é sempre perto do dia das mães. Uma semana depois, um pouco mais. Mas é sempre na mesma época.
Ontem foi dia das mães, sexta é meu aniversário.

Comecei a contar essa história porque lembrei que, das filhas da vó, minha mãe era a única que dizia que não ia ter filhos.
No entanto, foi a única que teve.

Há 24 anos minha irmã nasceu. Portanto, nesse tempo todo, acredito que minha mãe tem feito um bom trabalho.

As melhores coisas acontecem sem planejamento.
É na surpresa que está a graça.

Minha relação com minha mãe é a melhor possível.
Minha irmã nunca mais reclamou de eu ter nascido menina.

Nós somos muito ligadas.
E foi assim, sem querer.

Acho que temos nos saído bem, eu e minha mãe.
Mesmo sem ela ter esperado outra filha depois da minha irmã.
Mesmo sem eu ter nascido com pirulito.

No fim, deu tudo certo.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

O padre que coloriu o céu

Muitas pessoas nutrem o desejo de voar, mas não das maneiras convencionais. Queriam ter a possibilidade de levantar vôo por si só. Sair voando, por que não? Talvez essa fosse a vontade do padre Adelir Carli. Acontece que ele usou de meios nada convencionais para cumprir sua meta, e sumiu.

Imagine-se pendurado por mil balões de gás, partindo de solo firme, indo para longe. Essa era a meta de Adelir, e não podemos condená-lo. A questão é até onde devemos nos deixar levar pelo que almejamos. O padre, quando questionado, disse que não haveria problema com o mau tempo, pois voaria acima das nuvens. Não tardou para que os problemas surgissem e se concretizasse a desgraça anunciada. Até agora, ele está desaparecido, junto de um equipamento que não parece ter servido muito. Mas parte dos balões, que serviram de asas para o padre, foram encontrados boiando no mar, como aqueles jogados no canto de um fim de festa.

Sonhos são importantes e, com certeza, devemos tentar realizá-los. Mas onde se confundiu sonho e responsabilidade na cabeça do padre? Nossos atos impensados, ou não tão bem calculados, têm consequências, muitas vezes, desastrosas. No entanto, o padre, ao se ver longe do chão, teve esperança de que daria certo. E quem o viu subir presenciou Adelir colorindo o céu com seus balões.




* texto da G1 de Redação para Comunicação, elogiado pelo melhor professor.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Soprando as velinhas

O inverno também traz o meu aniversário.
Eu adoro comemorar.
Desde criança eu sempre gostei de festas de aniversário.

Mas o inverno me deixa melancólica e nostálgica. Então, fui ver os vídeos das minhas festas infantis.

Não me importo de envelhecer. Eu comemoro a vida.
Acho justo, depois de tudo o que fazemos, nos acrescentarem mais um ano.
Mais um, menos um. Seja lá como for.
Tudo tem conseqüência, e a nossa é envelhecer a cada ano em que fazemos tudo o que fazemos.

Enfim, eu gosto de aniversários.
Mas eles têm perdido um pouco a graça.

Assistindo aos vídeos, vi o que mudou nas comemorações. Quando eu era criança, mal falava com os convidados. Acho que não conhecia metade daquelas crianças direito. O tempo vai passando e a gente vai ajudando a fazer a lista, o que facilita muito.
Hoje eu curto mais minhas festas, arrumo a decoração, recebo as pessoas, nem me importa tanto os presentes.

Uma coisa só me tocou muito naqueles vídeos.
Antes, eu não alcançava a mesa do bolo.
Não conseguia soprar as velas.

Minha mãe, então, me pegava no colo. Me fazia bater palmas junto. Me ajudava a soprar.

Faço 21 anos em dez dias.
Eu nem caibo mais no colo da minha mãe. Ela nem tem força para me levantar.
Nunca mais.

Eu não me importo em envelhecer, nem com as responsabilidades que a idade traz.
Mas queria que, naquela hora, ainda pudessem me levantar no colo.
Eu regrido em toda hora de parabéns para mim.

Ontem, vendo os vídeos, me dei conta disso. Ninguém mais vai poder me levantar no colo para que eu alcance o bolo.
Eu alcanço sozinha.
O bolo é mais baixo do que eu.

Essa é a única melancolia no meu aniversário.
A certeza de que vou seguir sozinha soprando as velinhas.

Invernando

Eu adoro o inverno.
Nele eu posso praticar toda a minha preguiça, embora não em sua totalidade, ou da forma que eu mais desejo.

Nessa estação eu fico mais melancólica, mais quietinha, mais amável.
Eu gosto do meu cobertor e atualizo a minha lista de filmes para ver.

Tenho até feito gente se acalmar com esse meu pensamento.
Convenço de que ficar em casa, no quentinho do sofá, é o melhor a ser feito.
Descobri que tenho grande poder de persuasão.

***

Essa minha preguiça me ajudou a desenvolver técnicas para conviver com ela.
Teve uma época em que eu sabia onde a porta do trem ia parar. Se eu estivesse bem na porta, havia mais chances de eu conseguir sentar.
Ao mesmo tempo, sempre tive horror de quem dormia no trem.

Um dia desses, entrei no vagão e tinha um grupo de mulheres. Era domingo, trem vazio, tinha lugar para todo mundo. Elas bebiam guaraná e falavam alto. Eis que uma tira o celular da bolsa e começa a tocar as suas músicas preferidas, ou funks frenéticos, como preferirem.
Ela dançava aquilo que a Mulher Melancia ensinou na televisão. Mas sentada.
O senhor que estava sentado ao seu lado estava visivelmente sem jeito. Um outro já ria.
Na minha frente, no assento especial, havia um rapaz com sérios sinais de esquizofrenia. Ele falava sozinho, olhava para o nada. Ou estava só pensando alto, não sei.
Sei que, do nada, ele também começou a dançar sentado.
E lá estávamos eu, a dançarina do trem e o esquizofrênico dividindo a mesma preguiça de ficar em pé no vagão.
E ouvindo o mesmo funk.

A realidade é bem mais engraçada do que se imagina.

Notas

Algumas pessoas andaram lendo meus textos.
Acho isso muito bom, inclusive.

Tenho algumas novas idéias e pretendo colocá-las em prática.
A primeira é que nem sempre vou escrever textos grandes, mas pequenas notas.
Pensamentos soltos.

A segunda é que vou começar uma série de textos sobre pessoas específicas. Ainda não decidi se vou manter os nomes ou vou inventar pseudônimos. Ou vou fazer os dois.
Isso eu ainda não sei.

Mas é tudo o que tenho a dizer. O importante não é o tamanho do texto, mas o que está escrito.

Leiam!